sábado, 11 de fevereiro de 2012

O Eleito

O eleito
Ricardo Gondim

Às vezes, querendo isolar-me e meditar, caminho por alamedas de antigos cemitérios. Reconheço a excentricidade. Mas não há nada mórbido ou sinistro em mim. Ali, diante da mais crua realidade, sou colocado cara a cara com a vida, sem evitar a finitude dos meus anos. Bom lugar para repensar prioridades.

Nessas andanças, vejo sepulcros antigos, semidestruídos, e imagino o que deve ter acontecido àquela família para deixar o mato tomar conta do que já foi um lugar sagrado. Procuro ler as placas gravadas em granito que se esfarelam. Divago sobre nomes moldados no bronze, que agora se apagam. Ali não há referência ao que viveram ou sofreram. São apenas nomes, mera conjunção de apelidos que identificam uma pessoa condenada a sumir.

No cemitério, acordo para o desejo de não ser esquecido. Todos sofremos com a ideia de não passarmos de mais um no oceano humano. Choramos no dia em que a luz nos encandeou pela primeira vez. Quando nosso grito atraiu a atenção dos que assistiram ao parto, começamos a acreditar que nos tornamos o centro do universo. A praça central da Galáxia passa a ser o lugar onde estivermos. Do peito que nos alimentou, sugamos mais que comida, nos alimentamos da autoestima que nos deixa convictos: o universo existe por nossa causa.

Daí, gastamos parte da existência a imaginar que deve existir algum tipo de eleição que nos distingue. Fantasiamos haver alguma lista com os especiais. Nos iludimos, sonhando que a confluência dos astros, as rodas do destino ou os olhos de Deus nos singularizam. Fazemos de nossa história o eixo do mundo. E sempre que alguma coisa nos suceder, suspeitamos: os vetores das estrelas se encaixaram para que algum milagre nos alcançasse.

O conceito de eleição está presente tanto nas mitologias como nas narrativas bíblicas. Narciso foi galardoado com beleza. O sacrifício de Abel foi aceito e o de Caim, rejeitado. Jacó, a despeito de sua falta de ética, ganhou a primogenitura – Esaú acabou descartado. Samuel marcou um x nas costas de Davi como o estimado de Javé. Além dos textos religiosos, a história também esteve repleta de poetas, literatos, cientistas e políticos que acreditaram na ideia de que Deus, a vida, o destino ou qualquer outra força os predestinou. Eles não se viam cotidianos, banais, ordinários. Pelo contrário, acharam que os outros mortais deviam se sujeitar aos códigos que escreveram.

Em Crime e Castigo, Dostoievski separa a humanidade em ordinários e extraordinários. Os extraordinários seriam homens e mulheres que ganham o direito de fazer e acontecer na história. Eles, contudo, não sofrem as penas que os outros estão sujeitos. Só os comuns precisam agir dentro da lei; obedecem ao superego (superego é por minha conta – tal conceito não existia nos tempos de Dostoievski); não podem deixar de moldar-se às exigências morais do tempo em que vivem. Aos eleitos, predestinados, escolhidos, ungidos, a lei sempre abre enormes exceções. Os insignes podem tudo. Logicamente o autor russo mostrou o absurdo dessa lógica e como ela foi responsável por inúmeras vexações.

Lutamos desesperadamente para não nos vermos reduzidos a uma placa corroída em algum cemitério. Religiosos sistematizam teologias para ensinar que, mesmo na hostilidade da vida, Deus tem sua casta. Esses, custe o que custar, desfrutarão as delícias infindáveis do Paraíso. A indústria do entretenimento também escolhe reis e rainhas. Não valem para os ídolos da música, futebol ou cinema as mesmas cercas impostas às massas. Políticos se sentem triplamente eleitos: O Eterno os guindou à posição de mando, o povo homologou a providência divina e a Fortuna os brindou com benesses.

Acreditar-se eleito é maldição – em qualquer circunstância. Os eleitos de Deus se condenam à soberba – e empáfia antecipa a queda. Os ungidos sociais não têm como evitar olhar os excluídos com pena, de cima para baixo. Os afilhados do sistema econômico acabam se alienando da simplicidade – onde a vida realmente acontece. Não há nada mais irritante do que conviver com a vaidade de quem se acha dono de uma inteligência acima da média.

Os maiores carniceiros da história se viram eleitos. Enquanto o verdadeiro Ungido de Deus abriu mão da prerrogativa de ser único para irmanar-se a escravos, pobres e destituídos. Todo e qualquer sistema que rodopia em torno de “raça eleita”, de “povo especial” ou de “cultura sagrada” se tornará opressor. As barreiras que separam homens de mulheres, senhores de escravos, judeus de gentios, pobres de ricos, merecem ser implodidas.

O universo não se expande seletivamente. Existe contingência. Acaso e aleatoriedade esvaziam a percepção de necessidade cármica. Na narrativa bíblica, Deus faz com que sol e chuva venham, e não faz acepção de pessoas. A graça divina não privilegia, seu amor não particulariza e sua misericórdia despreza causa e efeito. Para os que acreditam no destino, convém lembrar: ele é cego, incapaz de nomear favoritos. E para os que seguem o zodíaco: a confluência astral atinge de baciada, sem distinguir quem é quem entre os que chegam ao mundo naquele mesmo instante.

Religião tem o dever de divulgar o fim do individualismo, do egocentrismo, do personalismo. Filosofia não pode deixar de propagar a irmandade das nações. E para os que lutam na política, vale insistir: não há ética mais nobre que diminuir a brecha entre apaniguados e desprezados.

Querer fazer-se predileto é apequenar-se. Ambicionar ascender é cair. Cobiçar exceder ao restante da humanidade é minguar. Todo ufanista é pobre. Mal percebe que em um futuro não muito distante, algum caminhante passará por sua cova e não vai notar que ali jaz um predestinado – que imaginava trazer o rei na barriga.