sábado, 26 de janeiro de 2013

O tempo e o acaso no jogo da vida - Eclesiastes 9.11

Ricardo Gondim

A vida se parece com um jogo de cartas; cinqüenta e duas são embaralhadas e distribuídas entre os que se propõem jogar. Importa que todos participem em pé de igualdade. Jogam-se várias partidas. As cartas não priorizarão ninguém. Pelas leis da probabilidade, quanto mais partidas, menos entrará o fator sorte. No baralho, ninguém pode ser privilegiado pelo acaso.

Na vida, sempre alguém recebe uma “boa mão”. Como só vivemos uma vez, alguns nascem “privilegiados”, “predestinados”, “abençoados”, “afortunados” (pela deusa Fortuna). Os demais, para permanecerem no jogo, precisam se desdobrar. Para compensar a “má sina”, arriscam, suam, varam madrugadas, sobem ladeiras.

Tanto no desenrolar do jogo como na existência, os privilégios devem se alternar. Quem começa bem, não tem garantia de continuar com a mesma “sorte”. Os que amargam um péssimo início não precisam se desesperar: mais cedo ou mais tarde, pela matemática, todos se nivelarão. Quem perde hoje pode ganhar amanhã; os vencedores atuais, se permanecerem na mesa, chorarão. Se vivêssemos em uma sociedade perfeita, as gerações se alternariam no topo da escada. Acontece que os poderosos usam de todos os mecanismos para nunca permitir que os desventurados saiam da condição em que se encontram.

Comparar a vida a um jogo carrega, portanto, significados éticos. As cartas não podem ser marcadas. Não vale trapacear. Assim, como o “dealer” não antecipa a vitória de qualquer um, a divindade não premia ou amaldiçoa ninguém.

Comparar a vida a um jogo, esvazia conceitos religiosos deterministas. Basta que um cromossomo não se encaixe no código genético e a criança terá alguma anomalia genética e isso não vem prescrito desde a eternidade como sina. Caso uma membrana cardíaca, uma válvula, não cresça durante a formação intra-uterina, o bebê precisará de uma intervenção cirúrgica na hora do parto. A incubadora não é câmara de castigo, que purga o recém nascido de pecados da vida passada. Quem depende de uma cadeira de rodas para se locomover não está sob maldição, preso às forças cegas do destino. No decorrer dos anos, tempo e acaso podem mutilar, cegar, ensurdecer (Eclesiastes 9.11).

A genialidade herdada pela feliz combinação da erudição materna com a perspicácia paterna – ou vice versa – pode trazer ao mundo um menino prodígio. Mozart encantou a corte europeia antes dos dez anos de vida. A luminosidade de Shakespeare, Leonardo da Vinci, Voltaire, Karl Marx, Heidegger, Thomas Edson, Gandhi, Simone Weil, Garrincha, Pelé, Michael Jordan e Nelson Mandela não pode ser explicada senão por uma gratuidade fortuita.

A menina vende doce no sinal de trânsito; por que nasceu em alguma choupana imunda da periferia? Que outra opção lhe foi dada? Por que não em algum palácio real? O que explica o garoto ver-se condenado a passar a maior parte da infância convivendo com traficantes, sem conhecer abraço ou elogio paterno? Os olhos azuis da atriz, os seios volumosos, a aptidão para decorar, encenar, dançar, a tornaram milionária, mas quem orquestrou tais privilégios em um mundo em que ao contrário do caráter, estética conta para o sucesso? Depois ainda há a longa estrada que, a qualquer instante, pode surpreender a todos. A partida, a jornada, que começou esplendidamente pode tornar-se trágica. Aviões caem, matando todos a bordo: o empresário e o mecânico, os noivos em lua de mel e o piloto, o padre e o cafetão. O poeta pode ficar cego; o escultor, aleijado; o atleta, sem uma das pernas; o general, sem os dois rins; e o presidente da república, cair com leucemia.

Todos estão sujeitos a tempestades, raios fulminantes, balas perdidas. Princesas lindas e queridas morrem prematuramente, basta que o carro, dirigido por um motorista alcoolizado, bata contra a parede do túnel. O contrário também pode acontecer: o menino galgar as estreitas malhas da peneira econômica para tornar-se músico erudito; do gramado de um vilarejo, nascer o craque que encanta o mundo com dribles mirabolantes.

Quem seriam vencedores e perdedores? Na complexidade do jogo da vida, perder ou ganhar não tem receita simples. Quem junta dinheiro não triunfa, necessariamente. A vida simples do camponês não é insignificante. A história foi entulhada por personagens que jamais alcançaram uma existência inspiradora, apesar da riqueza – ouro foi a maldição de Midas!

Integridade não se restringe a jogar de acordo com as regras, e sim desistir do desejo de suplantar os pares. No jogo de baralhos, o intuito não é vencer, mas tornar o instante lúdico.

Na vida, “jogamos” não para ultrapassar os demais. Somos convocados a repartir as boas cartas com os menos privilegiados e estender as mãos aos que não conseguiram sequer entrar no jogo. No outro extremo, quem para de lamentar as péssimas cartas distribuídas, aceita as mãos estendidas sem se sentirem humilhados. Assim, triunfos gratuitos perdem a força de escravizar com egoísmo e desgraças deixam de ser sinônimo do esconjuro divino. E grandeza pode significar outra coisa que chegar primeiro, ganhar mais, pisotear o próximo: é mudança de atitude, deixar de ver cada movimento do jogo como uma batalha e fazer da “partida” um desafio de coexistência. Adversários hoje podem vir a ser parceiros amanhã.




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